terça-feira

Espelhos d'alma

Publicado a 24-06-08
É noite. Mas ela usa a sua máscara diurna. Ela está em casa. Mas não recebe nenhum cliente. Não é uma noite de folga. Não houve sequer uma escassez de clientes para preencher o serão da jovem acompanhante. Ana cancelou antecipadamente um jantar que tinha combinado com um cliente habitual e vestiu o pijama. Calções e um top de seda fazem transparecer nela um ar tranquilo, sereno e casual. Sentada no sofá, onde dezenas de homens já experimentaram o desejo carnal da mulher sensual, ela procura sentir-se desejada. Volátil. Acarinhada. Ela está em cima do colo de Rafael. Os seus braços envolvem o pescoço do seu vizinho. O seu rabo aperta as coxas do seu amante que não é cliente. E todo o seu corpo roça no tronco do homem que a obriga a despir a máscara nocturna. Porque Ana deseja-o. Necessita da presença dele. Mesmo que Rafael demonstre uma presença fria. Mesmo que o único homem que é capaz de desarmar o carácter confiante e altivo da jovem, não ceda à entrega. O compromisso parece inevitável. Ainda assim, Rafael é um bloco de gelo. Ele acaricia as coxas descobertas de Ana com a mão direita e com a mão esquerda enche o seio dela. A troca de sorrisos é o flash luminoso que faz os dois amantes comunicar em silêncio, até que alguém solte palavras coerentes.
- Sabe bem estar aqui contigo... - confessa Ana.
- E tem sido sempre assim?
- O que queres dizer com isso?
- Tens-me evitado...
- Se te disser que tenho trabalho, talvez soe foleiro...Mas a verdade é que tenho estado ocupada...
Festas privadas, clientes atenciosos e uma panóplia de situações que Rafael não vê e Ana não mostra.
- Passei os últimos dias em casa dos meus pais...Só voltei hoje à tarde e...
- Posso fazer-te uma pergunta?
- As que quiseres.
- Os teus pais sabem?
- De ti?... Queres assumir um compromisso?
- Não fujas ao assunto...
- Eles não sabem que eu sou acompanhante... É a melhor resposta que te posso dar.
- E vives bem com isso?
- Porque não haveria de viver?
- Estás a enganá-los...
- Não os estou a enganar! Sei o que faço. Já sou adulta e sei tratar de mim. Para além disso, é a minha vida, não é a deles.
- És filha deles! Recebes dinheiro por estar com homens que só estão interessados em aproveitar-se de ti.
- Neves! Não vamos voltar ao mesmo. Já te disse o que penso. Eu entendo isto como algo que quero fazer. Não tenho esse direito?
- Não de o esconderes às pessoas que gostam de ti!
- Nunca escondeste um segredo da tua família?!... Aliás, nunca ouvi uma palavra tua sobre família. Não me lembro de te ouvir dizer o meu pai, a minha mãe, irmã, tio, sobrinha....
- Não interessa...
- Como assim, não interessa?! És assim tão frio que não consigas sequer falar da tua família?!
- Sim. Sou. É a melhor resposta que te posso dar.
Ana amua. Ana prometeu a si mesma que iria receber mais de Rafael do que um distanciamento egoísta. Ana procura aproximar-se sem querer precipitar a sua vida. Ana pressente que quanto mais procura chegar à verdadeira alma do instrutor, mais ele se fecha. Ana aproxima-se da face dele e entrega-lhe um beijo seco, para depois sair do colo dele.
- Vou à casa de banho...
É na divisão branca que Ana se evade. Até Rafael já entendeu essa reacção. Assim que algum assunto a incomoda. Logo no instante em que não há mais razão para conversa. No preciso momento em que deixa de sentir um reflexo que a apoie e proteja. Ana evade-se. Pinta um beijo seco na boca do amante e assim que entra, encosta a porta da casa de banho. Rafael sabe como agiu, porque agiu e até entende as consequências. O andar vagaroso, mas sensual de Ana deixa o homem entesado. Entrar na vida privada dele é como querer abrir uma caixa de Pandora. É como querer partir o espelho da sua alma.Quando alguém tenta entrar no oculto de Rafael, acaba por ser atacado ou confrontado com a inutilidade de penetrar naquilo que ele jamais quis contar a alguém. A sua vida, o seu intimo, os seus segredos. Porque Ana sabe melhor do que ninguém. Toda a gente tem segredos. E o instrutor também têm a certeza de que Ana se sente impotente quando não consegue alcançar a verdade do que pretende. Após vários segundos de hesitação, compenetrado nos seus pensamentos, Rafael acaba por levantar-se. Coloca um sorriso na face, aceitando que foi brusco na resposta que deu a Ana. A acompanhante, afinal, é a mulher que mais tentou conhecê-lo nos últimos tempos. Estudá-lo. Criar-lhe um perfil. Adaptar-se a ele. E não se considerando um cliente, ele entende o esforço que foi feito pela jovem. É um relacionamento que precipita o carácter frio de Rafael. É uma amante que desvirtua algo que ele parece prometer a si próprio. Afrontá-la exageradamente, como um jogo de gato e rato, será sempre um erro. Por isso, ele empurra com ligeireza a porta, onde Ana já se aprofunda no seu refúgio. A jovem está sentada em cima do mármore do lavatório da sua casa de banho. É um sitio requintado. Diferente. Escolhido a pormenor. Para começar, não é um lavatório. São dois. Um duplo armário, colocado num dos cantos desta divisão branca. Com porcelana luxuosa, design inovador e uma limpeza extrema, há um confronto de dualidades neste espaço singular. Como se estivesse pensado para um casal. Como se estivesse pensado para duas pessoas gozarem da sua intimidade e higiene, sabendo que ao seu lado está a cara metade a partilhar o espaço com toda a comodidade. Colocado em cima dos armários, junto ao mármore claro, estão dois espelhos enormes. Largos e compridos. Puros e definidos. Confrontam-se lado a lado, num ângulo de noventa graus. Com todo o jogo de luzes no topo, com todo o brilho que todo o espaço transluz, o jogo de imagens que os vidros dos lavatórios provocam são fascinantes. Neste preciso momento, Ana está entre estes dois espelhos. Está sentada na enorme peça de mármore que une os dois armários, os dois lavatórios, os dois espelhos. Nos vidros iluminados, estão espelhadas as costas dela, vistas de dois ângulos precisos. Com a apatia dos lábios de Ana, ao mesmo tempo que guarda um reserva de desejo no olhar, Rafael vislumbra a dupla personalidade de Ana na sua máxima força. A máscara diurna espelhada de um lado, a máscara nocturna reflectida no outro. E neste instante, em que os seus passos vagueiam a medo pelo ladrilho da casa de banho, Rafael procura escolher o lado certo. Quando percebe que a amante já optou por uma faceta, ao erguer as pernas, ele volta a congelar o passo. Antes de mais, ele precisa retractar-se.
- Não tenho relacionamento com a minha família... Zanguei-me com o meu irmão há uns anos e desde então não lhes falo. Soa melhor?...
- Vem cá...
Ana despe os calções e coloca um pé em cada lado. De pernas abertas, o seu sexo está perfeitamente dilatado, visível e apelativo. Os lábios vaginais estão inchados e o clitóris parece querer espreitar. Ela exibe um olhar presunçoso, ciente da sensualidade que ousa transmitir. Coloca os cotovelos em cima dos joelhos e pende o peito ligeiramente para a frente. A jovem pretende pôr de lado a intransigência da frieza de Rafael. Mesmo que ele até esteja disposto a revelar-se gradualmente. Ainda assim, ela prefere diferente. Ela pede diferente. Ela age diferente. O homem não esconde a excitação que tal visão provoca. Aproxima-se dos lavatórios e à medida que se cola ao corpo dela, encaixa-se por entre os dois armários. Os braços de Ana tocam no peito dele. Abrem os botões da camisa e puxam-na, para depois descobrir os ombros largos do amante. Rafael encosta-se a ela, deixando que tome conta de si. As mãos dela aventuram-se. Abrem toda a camisa e depois desapertam as calças do homem. A face dela encosta-se ao pescoço de Rafael. Roça com os lábios na pele húmida do seu vizinho. O instrutor decide-se por encostar o queixo no topo da cabeça dela, olhando ao mesmo tempo para o reflexo das costas de Ana. A jovem continua a desbravar o pescoço com a boca até chegar junto ao ouvido. Algo murmura na alma dele, enquanto o seu corpo é apertado contra o amante.
- Entra em mim....
O sexo dele pende para fora. Toca ao de leve na margem do mármore. Ana está completamente aberta. Molhada. Excitada. Necessitada da intensidade que ele teimou em deixar rasto no seu corpo. Porque Ana sente falta do toque dele. Até mesmo quando veste a sua máscara nocturna. Até mesmo quando a despe. Não obstante o jogo cínico que ambos praticam, ela não nega a evidência de necessitar da presença de Rafael. Entesado e taciturno, o instrutor acaba de penetrar por entre as pernas de Ana. Poderoso. Extenuante. Supremo. Os pés dela parecem colar-se à base de mármore. A jovem não se move. Finca os dedos nos ombros dele, liberta um pequeno sustenido na voz, mas de resto, tudo em si está incólume. Porque ela deixa-se levar. Deixa-se incorporar nele. Permite que ele assuma o controla de si mesma. O pénis de Rafael está entesado e parece ganhar vigor dentro da rata da sua vizinha. Ele detém-na. Possui a necessidade de Ana. Segura o seu corpo, mas também a sua alma. Ainda assim, Rafael mantém o olhar em ambos os reflexos. E subitamente, ele está enfeitiçado com o jogo de espelhos. Entra e sai por duas vezes do intimo dela. Abraça-se às costas dela e faz força com o queixo na cabeça feminina. Mas ele parece evadir-se. Talvez até consiga levar Ana consigo. Mas certamente, Ana não consegue ver o que Rafael vê. Ela geme. Sente o sexo masculino dilatar a sua rata. Sente uma força intensa apoderar-se dos seus reflexos e dos seus sentidos. Quando ele a penetra de uma forma mais vigorosa, Ana solta uma das pernas. Deixa-a, pura e simplesmente cair. Assim, um dos calcanhares continua a segurar-se ao mármore. O outro bate levemente numa das portas do armário. As pernas mantém-se abertas.
- És tão linda!...
E ele só vê as costas dela. E ele sacode as mãos até alcançar as nádegas formosas da jovem. E ele mantém o olhar preso nos dois espelhos. Ele evade-se para um mundo distinto. Fixa o seu olhar e parece conseguir penetrar na sua própria alma. Ana está lá, mas ela não sabe. No espelho direito, ele vê-se a si mesmo tranquilo. Sereno. Apaga aquilo que nem a memória consegue fazer. Visualiza a máscara diurna de Ana. O seu lado doce, leve, carinhoso, meigo. Percepciona em segundo plano, no reflexo de um reflexo, o outro lado de Ana. Aquele que ela não consegue esconder. Nem mesmo com a máscara que a torna uma jovem apaixonada e subtil. As profundezas dos nossos segredos serão sempre como um icebergue. E ele encaixa-se nesta faceta. Neste perfil de costas. Naquilo que Ana não quer admitir e personificar a tempo inteiro. Mas que ele deseja. No espelho esquerdo, assim que Rafael gira a cabeça, ele vê-se a si mesmo presunçoso. Superficial, calculista, frio. Talvez seja a sombra da sua face que se reflecte no vidro. Talvez seja a percepção do outro lado de Ana mais a descoberto. A máscara nocturna dela, mais sombria, mais distante, mais perigosa. As costas dela carregam o peso de uma vida dupla, de uma personalidade escondida de muitos, desejada por imensos, possuída por aqueles que a contratam. E ele exalta-se com isso. Enfurece-se com o facto de gostar de alguém que vende a sua própria alma a clientes desconhecidos. E no seu corpo vibra a febre de provocação, de distância, de pudor, de revolta por algo que nunca deixará de ser uma faceta de Ana. Ainda que, reflexo de um reflexo, ainda seja visível o lado doce e fraterno de uma jovem perfeitamente normal. Naquilo que Ana já não consegue viver por inteiro.
- Neves...oohhh.... sentes-me??...Ohhh... consegues sentir-me... oohhh...sabes bem! Sinto-te todo em mim!....
Ele sente. Sente o corpo dela quando lhe agarra as nádegas. Sente a alma dela quando fixa os reflexos. Sente até a sua alma, numa penetração transcendente. Ele fode a jovem com uma ambiguidade surreal. Sabe que faz amor com a Ana que o deseja e que precisa do abraço que ele lhe entrega. Sabe que fornica, com uma carga selvagem, a Ana que tirou folga a um qualquer cliente e que decidiu entregar-se a ele, pressionando os braços dela contra as suas costas. O abraço é sublime. Os corpos fundem-se e conhecem-se. Ana apenas sente o vigor do sexo dele a prazentear o seu interior. Talvez possa pressentir a vibração que tilinta no tronco dele. Mas ainda assim, ela não vê o mesmo mundo em que Rafael viaja. Tudo muda. Tudo se transforma. Tudo se torna translúcido. A carne do rabo dela arrasta-se ligeiramente para a frente e para trás, tal é o ritmo frenético e cadente das penetrações dele. Ela geme. Ela grita. Ela pede por mais. E quanto mais ele lhe dá, mais a sua alma se expande. Torna-se vulnerável. Reflecte-se em si mesma e atinge-o. Enquanto se delicia com o corpo da amante, Rafael procura escolher um lado, uma faceta. Rafael quer escolher o lado das costas de Ana com que mais se sente inserido. É cruel. É incompreensível. É mordaz. Imensamente doloroso. Mas enquanto o homem se vem, ele prende o olhar no reflexo da máscara nocturna de Ana. Ela pressente o fervor que se espalha na sua rata e o aperto que todo o corpo dele exerce sobre si. A jovem finca os dedos na carne dos ombros do instrutor, cerra os olhos e liberta o seu prazer. Nestes instantes, em que o corpo dela flutua nas mãos dele, em que as suas pernas estão em lados opostos, em que o prazer se confunde com uma vertiginosa sensação de envolvência, os dois adultos quebram-se. Rafael pára progressivamente a penetração. Ana relaxa o seu corpo e acaricia os cabelos dele, assim que o homem pousa a cabeça no seu ombro. A cópula terminou, mas as posições mantém-se. As faces estão em lados opostos. Ouve-se as respirações, ouve-se o bater dos corações. Ouve-se um enorme arrepio das almas. Rafael tem um nó na garganta e Ana abre os olhos.
- O que se passou com o teu irmão? - diz Ana, ainda com a respiração ofegante.
- Se te contasse.... não ias acreditar.
- Eu ouço sempre histórias mirabolantes...Mais um dos motivos pelo qual adoro o que faço...
- Porque é que haveria de te contar? Nunca contei a ninguém...
- Ok, não contes...faz como quiseres...
- Espera!....Está bem..... O meu irmão...ele....uhm...ele...
- O quê? Casou com a mulher da tua vida?... - pergunta Ana ironicamente.
- Sim. - responde Rafael convictamente.
- Porra....... Desculpa... A sério, Rafael, desculpa...
Ela descola a maçã do rosto da orelha dele. Segura na cabeça do amante e chega-se ligeiramente para trás. Ana quer olhá-lo de frente. Confirmar se a afirmação dele é verdadeira. Certificar que finalmente, o seu amante está pronto a revelar os seus segredos mais profundos. Rafael olha uma vez para Ana. Depois baixa o olhar. Ele diz a verdade. Ele está pronto.
- Há coisa de seis anos, antes vir morar para aqui, namorava com a.... Se te disser que não me lembro do nome dela...podes fingir que acreditas?...
- Sim....
Agora o semblante de Ana modifica. Agora ele fixa o olhar dele e sente-se a mergulhar dentro dele. Agora Ana pressente que algo se transforma. Agora Ana ouve mais atentamente do que nunca.
- Ela era linda. Inteligente. A pessoa mais madura que tinha conhecido até então. Pretensiosa talvez...Dona de si, possivelmente... Namorávamos há sete meses e ninguém sabia disso. Envolver-me com colegas de trabalho na escola agrária poderia ser prejudicial. Ela era como uma amiga oculta na minha vida.....
- Até que ponto gostavas dela?
- Amava-a! Pronto, já disse... O Neves que conheces já amou perdidamente alguém... Comprei o terceiro esquerdo para vir morar com ela, talvez um dia assumir o compromisso, mudar de trabalho, mudar de vida, assentar...
- Onde é que moravas?
- Em casa dos meus pais. Sou o filho mais velho. O meu irmão sempre foi uma espécie de protegido e... Apesar de tudo, eu achava que era feliz...entendes?
Ana acena afirmativamente com a cabeça. Ela entende. Quer entender. Quer imaginar que Rafael já foi efectivamente feliz com uma mulher e que a faceta fria dele, afinal, é apenas uma máscara.
- Num Domingo de manhã, a casa estava preparada. Os meus pais prepararam-se. Pediram-me para estar preparado para receber em casa a nova namorada dele. Os meus pais morriam de ansiedade de saber que o filho mais novo estava terrivelmente apaixonado e que ainda por cima já pensava em casar-se.
- Era ela?!!
- Com a maior naturalidade da história, ela entra em casa agarrada à mão do meu irmão... Apaixonados... Ela não esperava ver-me. Ficou mais estupefacta do que eu.... Provavelmente não contava que o seu futuro cunhado, era afinal de contas, o seu outro namorado.... Nem percebi se o meu irmão sabia ou não... Pelo menos fingiu que não sabia... Aquilo durava há um mês. Ela tinha uma vida dupla e eu nunca percebi. Dizia que nunca tinha tido alguém como o meu irmão. Os meus pais adoraram-na. Inteligente, bonita, dissimulada, a nora perfeita para o filho perfeito.
- Meu Deus!...E ela?
- Como se nunca me tivesse visto...
- Não é possível... Como é que isso é possível?
- Passei-me.... Chamei-a todos os nomes que consigas imaginar. A ela e ao meu irmão. Ela negou. O meu irmão também..... Os meus pais recusavam-se a acreditar no que eu contava. Para eles, eu estava a dar falsas acusações. Para eles, eu procurava lixar o meu irmão. Não conseguiam acreditar que eu tinha escondido que namorava com alguém há tanto tempo... Chamaram-me mimado. O meu irmão chamou-me de aldrabão... E ela...ela...foda-se...ela não disse uma palavra!...
- O que fizeste?
- Desapareci... Não consegui enfrentar a ideia de que fui enganado e que passei por mentiroso à frente de toda a minha família... Ninguém acreditou em mim e nem sequer tinha provas de nada... As poucas coisas que tinha para comprovar...ninguém acreditou....Durante dois dias pensei em matar-me, pensei em matar o meu irmão...pensei em matá-la... Depois esqueci. Esqueci tudo. Esqueci quem era...esqueci quem era a minha família...vim viver para aqui.... Depois de um vicio estúpido em álcool e de meia dúzia de experiências patéticas com prostitutas...acordei.... Acho que acordei...
- É dificil de imaginar...
As palavras de Rafael têm uma tendência progressiva a soluçar. Custam a ser libertadas. Mas ele já não volta atrás. A sua respiração está ofegante. Ana olha incrédula para o seu amante e procura de alguma maneira confortá-lo. No preciso instante em que ela acaricia a face dele, existem duas lágrimas prestes a brotar do olhos de Rafael. Sim, o instrutor tem capacidade de chorar. Mesmo sendo difícl de acreditar, Ana tenta reagir. Mas algo já se libertou da alma de Rafael.
- É?! Achas que é?!...Sabes o que é ainda mais dificil de imaginar?! Sabes?? Imagina que eles se conheceram numa apresentação equestre que eu tive!....À minha frente!...Imaginas?! Eu fui cornudo e nem sequer me apercebi.... Consegues imaginar?!!!
- Neves....
Ele chora. Confirma todas as lágrimas que estavam presas dentro de si. Confirma a mágoa que ele sabia aprisionada dentro de si e que aprendeu a esconder. Confirma que Ana seria a única pessoa capaz de libertar o ódio que se acostumou a viver na sua alma. Ele chora e entende que após tanto tempo, ela é o melhor ombro para soltar o fantasma que sempre o tornou frio, calculista, distante de sentimentos, cruel de paixão. Ele chora e Ana vive uma dualidade de sentimentos.
- Neves, tem calma...
- Eles comeram-se no primeiro momento que puderam... Eles... eles enganaram-me!!
Ele berra. Grita toda a fúria que surpreendentemente vivia no seu âmago e que jamais alguma mulher conseguiu desvendar. A astúcia de Ana, na sua capacidade de ouvir, no seu envolvimento com quem partilha o corpo consigo, acaba por conquistar o oculto de Rafael. Como se fosse um cliente que procurasse a sua máscara nocturna para desabafar. Mas Ana veste a máscara diurna. Entrega-se a Rafael numa prova de paixão, numa entrega verosimil e sincera. Nem nas melhores fantasias, Ana se sentiu capaz de conseguir arrancar a dor do homem que daqui em diante lhe pertence.
- Vem para a cama comigo. Por favor...vem...
Como um menino a quem partiram o seu brinquedo predilecto. Como um adolescente que foi rejeitado pela rapariga dos seus sonhos. Como um homem que tem o coração despedaçado e nunca o conseguiu enfrentar. Rafael é um frágil rapaz entregue a um choro convulsivo. Ana é o ombro amigo. É a pele terna. É a ebulição de um sentimento. É a respiração tranquila. É a mão serena. Ana é o elemento que segura todas as lágrimas que o seu vizinho quiser chorar. Ele vai para a cama com ela. Não haverá sexo. Quente, explosivo, intenso, sem compromisso. Não haverão palavras. Cheias de mágoa, carregadas de dor, hipnotizadas por sentimentos incoerentes. Na cama de Ana, testemunha de noites ocultas com tantos clientes, o homem vai deitar-se e esperar pela tranquilidade que só as mãos dela lhe poderão dar. Surpreendente. Ousado. Incompreensível. Tudo o que se viveu esta noite no 3º direito terá lugar numa memória transcendente. Mas Ana vai guardá-la. Rafael vai vivê-la e seguir em frente. Mas tudo o que esta conversa significou, transmitiu, deu a entender, não terá certamente uma conclusão objectiva. E tudo o que acontecer na vida dos dois daqui em diante, nem um espelho irá conseguir reflectir.

9 comentários:

Anónimo disse...

Envolvente, emotivo, o imiscuir da lima com o melhor perfume francês. Em que dois seres únicos, se encontram com os reflexos um do outro.
Vocês fascinam-me… a dureza da vida e das escolhas que cada um tomou, aproximam-vos de uma forma inexplicável. Ambos escondem do Mundo o reflexo mais sombrio, como o aroma de uma floresta acaba de arder esconde o resultado de uma catástrofe, e mostram ao Mundo o reflexo resultado do que tanto procuram esconder. Um fá-lo de forma amarga e o outro fá-lo com uma doçura extrema – Espelhos D’Alma.

Aqui fica um beijinho cheio de Aromas, para os meus inquilinos do coração.

P.S- De tudo o que li neste edifício, e sem querer diminuir todo o excelente trabalho que tem sido feito, não encontrei nada tão sublime e envolvente como este texto. Fascinante! Um Bem haja!!

Sarah disse...

Fantástico!! Assumo o meu vício: começar o dia procurando um novo post neste magnífico edifício!! As histórias envolvem-me, prendem-me. Adoro a vertente mais sexual, mas tudo o mais, que lhe está inerente, deixa-me fascinada!
Ana é a minha personagem favorita, apesar de achar que não é a história real. A sua dualidade, a sua capacidade de "vestir" a máscara que melhor a protege de cada situação concreta...
Rafael... Neves... eu sabia que tinha de ter ali algo recalcado, que ele realmente não era tão frio e calculista como se mostra...
Impressionante e mais não consigo agora dizer.
beijo doce a todos os inquilinos

Anónimo disse...

Já confessei várias vezes que os meus posts preferidos são os que envolvem a Ana e o Rafael... juntos. Há qualquer coisa de peculiar e envolvente na relação que eles desenvolvem cada vez mais... E este post foi definitivamente dos mais fortes em emoções que já vi aqui pelo Edifício. Não é todos os dias que tu Magnólia nos presenteias com um quebrar de gelo... ou iceberg talvez :P que era o Rafael. Eu acho que ele deveria de pensar pela positiva... Se a ex-namorada não o tivesse traído... ele nunca tinha conhecido tão... intimamente a vizinha do lado ;)
Beijocas

luafeiticeira disse...

Em primeiro lugar agradeço a música com que nos presenteias, desncessário será dizer que tens bom gosto.
Qunato a esta história está bem escolhida para explicar o carácter frio de Rafael e o lado positivo e doce de Ana. Claro que estes dois só poderiam ter um final juntos, pelo menos, um envolvimento entre os dois diferente dos que têm com outras pessoas.
beijos

Presbitero Mas Pouco disse...

Apaixonei-me.
Este é o 1º Post (e por enquanto o único), que li e apaixonei-me pela forma brilhante com que misturas sexualidade com sentimentos, com a facilidade que nos "mostras" o intimo de cada "inquilino", com o enredo excelente com que nos presenteias, com a intensidade de adjectivos que usas para descrever cada cena, cada momento, cada sentimento. apaixonei-me pela fraqueza das tuas personagens, pela franqueza de sentimentos quando confrontadas com os sentimentos mais fortes se apoderam das suas almas.

Estou realmente apaixonado pela tua forma de escrever, parabéns pelo teu talento.
Ganhas-te mais 1 leitor assíduo.


PS: Obrigado LuaFeiticeira por me "mostrares" este magnifico contador de histórias.

Magnolia disse...

PAPINHA, agradeço as tuas palavras, sempre aromáticas, sempre cheias de alma. Os moradores do terceiro andar têm imensas coisas para contar e as que já foram reveladas sempre procuraram envolver quem as espreitas. De qualquer forma, também concordo que esta história de algo de genuíno e intenso.
SARAH, é sempre legitimo que haja um recalcamento em comportamentos assimetricos. As vezes, são esses segredos que se procuram esconder que nos tornam mais fortes perante o mundo. Mesmo que o mundo ache que não. Agora que caiu o véu de Rafael, será que ele consegue ser a mesma pessoa?
SPICY ANGEL, o teu ponto de vista é correcto. Talvez Rafael não acredite em destino ou em caminhos traçados. Mas as escolhas e os obstáctulos que já lhe surgiram parecem de facto um atalho para chegar até à vizinha do lado. Agora...será que ele seria mais feliz com a ex-namorada ( com traições ou não ) ou será mais feliz com Ana? Ainda há segredos por revelar :) Fica por ai.
LUA FEITICEIRA, ainda bem que gostas do gosto do Edifício. :)
Ana e Rafael têm de facto um envolvimento diferente. De qualquer maneira, ainda ninguém falou em final :) É que num relacionamento destes, tomar algo por seguro, é um erro. Veremos o que o futuro traz, mas de qualquer forma, ainda não parece estar à vista uma espécie de happy end.
PRESBITERO MAS POUCO, espero que continues leitor assiduo. Cusco nas horas vagas e comentador nos momentos certos. Espero que leias os posts anteriores, pelo menos os que for possível, sabendo que não é tarefa fácil. Agradeço as tuas palavras e é sempre bom quando alguém tem a mesma perspectiva do que o narrador, do que lê aqui.
Continua por aqui. Efectivamente, a Lua já nos trouxe leitores que trazem sempre nova motivação ao Edificio.

Camareira disse...

Sem palavras para descrever o que as tuas palavras me fazem sentir.
Um voo sem asas.
Um salto de paraquedas.
Alguma coisa assim.
Este espaço é magnifico


Beijos

luafeiticeira disse...

O teu blog nasceu já em 2008, certo? É que nesse caso tens um desafio no meu blog, tu ou os teus inquilinos...
jocas

Magnolia disse...

CAMAREIRA, ainda existem palavras para descrever. É sempre bom conseguir fazer voar alguém :) beijinhos
LUA FEITICEIRA, sim, este blog nasceu nos primeiros dias de 2008. O desafio que colocas, é na verdadeira assumpção da palavra, um desafio. Posso responder no post do Narrador? Aguardas? beijinhos