terça-feira

O Beijo

Publicado a 16-10-2008
E o beijo ímplicito que poderia nunca chegar a existir. E o abraço que carrega uma frágil história. E toda a incidência da intima curiosidade humana. A transformação de um instante de vida em arte e o significado de um momento guardado na mente. O Beijo de Auguste Rodin é uma escultura que evoca a idílica história de Francesca de Rimini. A mulher nobre que se apaixona pelo irmão mais novo do seu marido. A entrega da amante nua, sentada no colo despido do cunhado, encoberta pela face dele que absorve a essência do rosto maduro dela, personifica o amor que perdura aos sentimentos de perda. Os seus lábios podem quase tocar-se, mas palpitam em si a mútua reminiscência do passado. Nesta estátua que congela um momento, a beleza pode parecer uma postura apaixonada e confiante, despida de receios, de preconceitos ou de pudores. Nesta escultura, é excitante deduzir como se moldou aquele momento e imaginar o que pode acontecer na pose sensual que apetece ver.
Maria José amanheceu na graciosidade matinal. Sabe-lhe bem sentir-se bem. O amante que ela aceitou amar, ama-a ao seu lado. Henrique ainda dorme na cama ainda fresca. A mão suave da mulher suaviza no peito despido dele. Levemente, como quem o quer acordar sem o acordar. A manhã acorda todas as rotinas da professora, ainda que ela já não saiba o que é ter o hábito de despertar frequentemente ao lado de um homem. Ainda que ela nunca teve um quotidiano prolongado, acordando ao lado de um homem que amasse. Nesta manhã, Henrique parece ser esse homem. Aqueceu a sua noite, embeleza a sua manhã. E ao sair da cama, de corpo nú, Maria José experimenta esquecer qualquer amargura ou pudor. Os cortinados da janela estão entreabertos. Quatro passos adiante e a mulher empurra o caixilho do vidro que guardou o calor de toda a intensidade nocturna. Uma ligeira brisa entra naturalmente no quarto. O buliço da cidade já se fazia sentir. Os carros atravessavam a rua, para trás e para a frente. As pessoas entravam nas correrias habituais e os vizinhos abriam as persianas. Do outro lado da rua, havia uma persiana que não chegou a estar encerrada. Manteve-se toda a noite na escuridão, mas com uma barreira transparente entre o seu interior e o quarto do 1º direito. Um edifício um pouco mais para o lado direito, num andar um pouco mais elevado, numa janela indiscreta. Um pouco demais. Maria José já se apercebeu. Desde a manhã de ontem, quando não se sentiu sozinha ao despir a camisola do pijama. Alguém a espreitava. Não um vislumbre. Não uma espreitadela. Não uma mera coincidência de abrir uma janela para arejar e dar de caras com a vizinha a despir-se. Maria José percepcionava desde a manhã do dia anterior que alguém vigiava os seus passos dentro do seu próprio quarto. Um homem. Talvez. Depravado. Possivelmente. Um velho que encontrou uma forma de ocupar os seus dias de solidão. Poderia acontecer. Um adolescente que descobriu a melhor maneira de usar os binóculos que recebeu no aniversário. Plausível. Uma mulher. Uma peculiar mulher que alcançou no voyeurismo uma excitante de completar as suas fantasias. Muito provável. Maria José não conseguia perceber, por entre o cortinado, o perfil da pessoa que a espiava. Mas no momento que ela mantém a sua postura ligeira e nua diante da sua janela transparente, a professora aposta na sua melhor dedução. Ela tem sido observada. E se ontem, quando se confrontou com tal facto, a ideia lhe pareceu repulsiva, neste instante em que ela passa a mão pelos seus seios ligeiramente descaidos, o facto de alguém a comer com os olhos deixa-a excitada.
De um lado, Maria José tem o seu amante prostrado na cama, enterrado num sono amolecido pelas primeiras horas matinais. Se Henrique abrisse agora os olhos, conseguia perceber o quanto ela se sentia sensual diante dele. Porque o beijo que ele lhe entregou quando chegou ontem à noite a casa, demonstrou isso mesmo. Ele desejava o seu corpo sensual. De outro lado, a professora tem um espelho que reflecte os seus traços amadurecidos pela idade. E ela não vê um corpo que lhe desagrade. Rugas, curvas deficitariamente equilibradas, alguma flacidez nas zonas mais erógenas. Naturalmente. Mas ela apercebe-se dos seus cinquenta anos. E dá-se conta de viver bem neles. Atrás de si, a fantasia premente. Há um olhar forasteiro a apreciá-la. Uns olhos de mulher. Lésbica, pensa ela. Estará agora a admirar o seu rabo reluzente, tatuado com as caricias de Henrique quando ele a deitou naquela mesma cama. Estará embeiçada pela firmeza das suas costas, fruto de uma postura séria mantida durante anos a fio. A mulher que a observa já não será jovem por certo. No minimo terá trinta e cinco anos. Casada, sem filhos. Talvez tenha descoberto que uma mulher tem o poder de a conseguir excitar e tenta comprová-lo no segredo do seu quarto. No máximo terá cinquenta anos. Um marido que aprendeu a odiar, filhos adultos, uma vida sexual deprimente e uma paixão platónica pela funcionária da lavandaria que engoma a sua roupa semanalmente. Qualquer um destes perfis entusiasma a líbido de Maria José que passa agora dois dedos por entre as suas nádegas. E ela ainda tem a ardente sensação o sexo do amante a latejar dentro de si, quando a mulher se colocou de gatas para ele, no decorrer da noite quente.
Nunca uma manhã pareceu tão singela e tão perfeita ao mesmo tempo para Maria José. Como se pudesse guardar aquela sensação de excitação, sem sequer ser tocada. Como se fosse venerada pelo inconsciente e pelo desconhecido. Uma auto-estima reflectida num homem que dormia e numa pessoa estranha. A mulher procura fazer perdurar estes momentos. Já quase sem olhar pela janela, a inquilina sabe que continua a ser vigiada. Isto dura há algumas horas. Talvez até há alguns dias. Maria José apercebeu-se do olhar indiscreto por volta da uma da manhã. Henrique absorvia-lhe a ansiedade da sua pele, enquanto lhe abria as pernas e beijava o ventre com imensa paixão. A boca dele guardava o calor que os seios dela brotavam. Maria José estendia-se na cama, despida de roupa, nua de incertezas. Ela queria que o seu cunhado a possuísse. Por entre as pernas da mulher, Henrique roçou a boca na rata madura e húmida. Nesse instante, Maria José esticou os braços e libertou um gemido forte, que fez dilatar o peito feminino. Excitada e vulnerável aos desejos do amante, a professora quis deliciar-se com o atrevimento da lingua do proprietário daquele apartamento. Procurou concentrar-se e encontrar um foco para manter o seu olhar. Ao mesmo tempo que Henrique segurou as pernas dela e ergueu-as, Maria José fixou a atenção na janela. No meio da escuridão externa, um brilho despontava de uma janela. Parecia um reflexo da luz do lampião urbano que esbatia num vidro. Envolvida no minete intenso que o seu amante lhe proporcionava, ela quis imaginar que ali estava uma pessoa. Alguém com uns óculos ou até mesmo outro aparelho ocular. Podia ser um binóculo, uma máquina fotográfica de alta resolução, até mesmo uma câmara de filmar. De qualquer forma, a professora tinha quase a certeza de que estava ali um vulto humano e que o mesmo via o que estava a acontecer no seu quarto. Maria José chupou um dedo e veio-se. Em si, brotava a emoção de saber-se observada. É manhã e a professora sabe que quem a espia ainda não retirou a atenção do que acontece aqui dentro. Ela volta a morder o dedo e solta um breve riso, fruto da satisfação que a mulher goza, ao saber que alguém a vê nua. E no instante em que ela olha discretamente por entre os cortinados, Henrique acorda.
Será que alguém se masturba na janela indiscreta? Maria José gosta de imaginar que sim. Excede os limites das suas fantasias ter a sensação que metros adiante, do outro lado da rua, alguém está sentado numa cadeira, escondido por entre as cortinas, por detrás de uma parede alheia. Provoca-lhe calafrios intimos pensar que derivado da sua nudez explícita, uma mulher ou um homem toca o seu sexo para seu próprio prazer. Na cabeça de Maria José, torna-se arrepiante mas frenético julgar que alguém está a olhar para ela e masturbar-se. Tão bajulante como a forma aguerrida que Henrique usa para olhar para a sua amante. Ele está deitado na cama, mas percepciona a postura leve, ainda assim intacta, de Maria José. Ela sabe no que ele pensa. Foi a última coisa que ela se recorda da noite de ontem. A memória daquele olhar quente, envolvente e apaixonante pintou-se no instante em que a mulher alcançou o último orgasmo da noite. O mesmo que a arrebatou para um cansaço evidente. E Henrique olha para a inquilina, garantindo que a mulher se ofereceu mesmo daquela forma, na noite antes desta manhã. E tudo terá sido visto na janela indiscreta. A entrega e a ousadia de Maria José foram projectadas desde o cenário morno do quarto até ao lugar onde provavelmente o observador sinistro mas excitante de Maria José se tocava. No pénis, na rata? Não interessa. A professora sabe que isso aconteceu. E ela está agora entre o olhar de ressaca do seu amante e o olhar de ansiedade do seu voyeur. Poderia tudo recomeçar. Ela pode deitar-se na cama e sentar-se de novo sobre o colo do amante despido. Ela pode voltar a incarnar um papel de selvagem fora de controlo. Porque foi assim que a mulher madura se sentiu, ao exibir-se para a janela observadora. Jamais Maria José conseguiu demonstrar a si mesma uma faceta tão devassa e tão exibicionista. Na noite de ontem, ela sentia que queria aquilo. Ser observada, alvo de cobiça visual, objecto de prazer. Maria José queria protagonizar-se, como uma verdadeira actriz de carácter erótico. Porque quando ela se sentou em cima da cintura dele, deixando o sexo dele penetrar profundamente dentro de si, a mulher encenava a sua cena escaldante. Henrique entusiasmou-se com a entrega da amante e acariciou as ancas dela. Deixou o corpo dela mover-se, de forma a que o pénis crescesse e envolvesse a rata molhada. De olhos sempre bem abertos, Maria José confrontou o olhar dele e começou a cavalgar. Ela tinha a certeza que para o seu voyeur, aquilo era um momento alto. E na mente da mulher estava a ideia de que do outro lado da rua, alguém se masturbava com os sucessivos acontecimentos lascivos do 1º direito. Maria José saltava, fazendo tremer as suas nádegas, de cada vez que deixava o pénis de Henrique mergulhar no seu interior. Havia uma luz ténue - do candeeiro da mesinha de cabeceira - que iluminava a cama e criava um ambiente intimo. Ela acariciou os seios e foi cavalgando impulsivamente. Gemia. Ela queria gemer. Mesmo que ninguém ouvisse de tão longe, ela queria garantir que quem a observava podia supor a sua voz de prazer. Seria alguém que ela conhecesse? Uma vizinha que ela cumprimentasse quando ia tomar café ao Espaço? Uma mulher que a olhasse com desejo quando ela tomava o caminho até ao fundo da rua? Uma aluna sua? Uma colega de escola? Aquilo excitava-a. A incerteza de não saber quem participava indirectamente na sua foda fazia fluir uma adrenalina em todo o seu corpo. Poderia ela já se ter vindo com tão escaldante visão? Por quanto tempo estaria ela a masturbar-se. Iria filmar em pormenor? A quem iria mostrar? A cada pensamento, Maria José aumentava a dimensão do seu salto e impingia mais pressão quando apertava o pénis dele no seu intimo. Ela estava louca. Sentia-se louca. Sentia-se perversa. Sentia-se a ultrapassar o limite do bom senso e a desafiar o conforto da sua privacidade. Não confessou a Henrique que estava a ser vigiada. Não confessou que enquanto fodia com ele, se sentia uma mulher num filme erótico, visionado por homens e mulheres sedentos de prazer visual. Na noite passada, na intimidade do seu quarto, Maria José não se ofereceu apenas ao seu cunhado. Um terceiro elemento possuia o seu espirito, proporcionava-lhe um deleite desmesurado e fez a mulher vir-se com uma fantasia dentro de si. E a única coisa que confessou a Henrique foi a tesão que lhe estava a dar sentada em cima dele, a cavalgar num pedaço de carne soberbo.
Henrique não consegue ler a mente da sua cunhada. Ela tem um dedo a roçar levemente a sua vagina. A mesma que ele ontem inflamou com tanta paixão, com tanta fome, com tanto desejo de prazer carnal. A mulher não sabe se olha para ele, se refugia os olhos na janela escondida. Será que quem está do outro lado repara que o objecto da sua vizualização se apercebeu? O que esperará o voyeur do que possa acontecer? Será que ele ou ela a vê como uma ninfomaníaca que fode a qualquer momento com aquele homem? Será que ela desconfia de quem seja aquele homem? Estas interrogações surgem enquanto Henrique espera. Maria José está excitada. Quer pelas lembranças escaldantes da noite passada, quer pelo vigor que o sexo de Henrique ostenta pela manhã, quer pelo exibicionismo que ela quer evidenciar. Um sorriso pinta-se na sua face. O homem senta-se na cama e estende a mão, chamando a sua presença. Pé ante pé, a professora aproxima-se de Henrique. Senta-se no colo dele e sente as mãos fortes a tocarem nas suas coxas. Os seios femininos roçam no peito dele. Os mamilos estão rijos mas húmidos. Levemente, o braço de Maria José envolve o pescoço do seu cunhado. E na janela indiscreta, alguém assiste a tudo isto. Será que ela sabe o sentimento que agora flui entre os dois? Paixão, amor, desejo carnal? Será que ela desvenda que o homem a quem ela se entrega faz parte da vida da mulher de uma forma ao mesmo tempo sinistra e apaixonante? Maria José quer achar que para além do seu quarto, por detrás daquela janela indiscreta, está uma suposta mulher que mais do que ver um corpo nu, mais do que se masturbar com cenas tórridas, mais do que excitar-se com a ansiedade do que pode acontecer num pequeno quadrado, pretende imaginar uma história entre os dois amantes. Para Maria José, a voyeur pode ver um homem e uma mulher casados, um casal de amantes ou até a mais ínsólita história de um homem que seduz as suas inquilinas para proveito carnal. Mas será que essa observadora consegue ver que naquele quarto, a mulher abraça o homem que a torna feliz? Será que ela sabe que que esse homem é o viúvo da irmã da mulher com que ele fez amor? Por detrás de uma janela indiscreta não é possível alcançar as peculiariedades de uma paixão. E nesta ordem de ideias, Maria José conforta-se com a intimidade da sua privacidade. Como no Beijo de Rodin, a mulher entrega-se ao colo do seu amante. A história reside neste abraço. A face de Henrique encobre a face de Maria José que quase se encosta no ombro dele. A mão do homem segura a anca da amante. E o beijo está tão próximo. É este sentimento puro que Maria José quer oferecer à sua observadora. Ela ama o homem que se apaixonou pela irmã mais nova da sua mulher. Para além da perda, para além da dor, para além das memórias que perduram, este é o presente. E antes mesmo de os lábios se colarem, no preciso momento em que uma brisa acorre por entre os dois prédios e empurra o cortinado gracioso do quarto do 1º direito, cortando a visão do voyeur, um pensamento aterrador invade a mente silenciosa de Maria José. A personagem que a observava podia ser a sua ausente irmã.

7 comentários:

Unknown disse...

Será que o proprietário do edifício Magnólia resolveu dramatizar a vida dos seus inquilinos? 1º uma miúda que engravida dum ex-namorado, agora uma mulher que se sente vigiada por uma irmã que já morreu. Acho que o prédio precisa de remodelações, precisa de alegria.
Este texto é belo, mas demasiado denso para um blog, pois acabamos por nos perder nas divagações da sua personagem, está bem escrito porque por vezes não percebemos se as descrições se referem à "realidade", se à imaginação de Mª José, mas é um texto a ser lido em folha, não em ecrã.
beijos
PS: se calhar devia tê-lo imprimido

Papinha disse...

Concordo com algumas observações da lua, mas de salientar a beleza da ambiguidade entre a realidade e os pensamentos de Maria José! É este ponto que torna o texto tão belo!

Um beijinho aromatizado!!!

Magnolia disse...

LUA FEITICEIRA, a dramatização dos inquilinos vinha a ser construida ao longo dos tempos. Naturalmente, existem agora dilemas e coisas por resolver. Tal como num filme ou numa novela, o drama existe, dando leves espaços à alegria. Ainda assim, neste post creio que o essencial foi demonstrar que Maria José se sente bem no seu corpo e na forma como entende a sua paixão. O fantasma da irmã assusta a mulher, mas creio que isso já ocorre há imenso tempo. O episódio do voyeur foi apenas uma reminiscência do seu inconsciente a funcionar.
Concordo contigo que possa ser um texto denso. Demasiado perdido nas divagações dela. O intuito foi um pouco esse, apesar de poder estar exagerado.
Quanto ao facto de ler no ecrã ou na folha, deixo isso ao critério de quem lê, na esperança de que o leitor tome a opção que possa valorizar mais o que foi relatado.
A alegria virá certamente, Lua. Mas também haverá outros dilemas pelo caminho :)
Beijinhos e mais uma vez, não me esqueci do teu Espaço.
PAPINHA, agradeço-te as palavras. O texto é ambiguo e denso, também foi escrito ao sabor das emoções. Na verdade, deve ser dos textos mais impulsivos do Edifício. Mas ainda bem que gostaste.
beijinhos

Lize disse...

Apesar de também achar que os dilemas estão a ficar cada vez mais complicados, não penso que isso seja uma coisa má, e notava-se bem o que estava para vir. Este é dos textos da Maria José que nos fazem concluir tudo aquilo que tínhamos vindo a descobrir até agora (quer por suposições, quer por revelações): que Maria José se sente cada vez melhor na sua pele e nos seus 50 anos, e que Henrique é uma das razões que faz com que ela se sinta assim; que ela ama o cunhado; e que se sente de certa forma culpada de se sentir assim e de se entregar assim ao viúvo da irmã dela. Isto, é a minha visão do dilema :P Beijocas

Magnolia disse...

LIZE, é uma visão acertada do que aconteceu. Isto apesar de efectivamente com tantas divagações, poder haver interpretações distintasmas acertadas. Para além de ostentar uma beleza atraente, Maria José quer demonstrar que vale a pena sentir-se bem com o que lhe é dado, por mais sinistro que possa parecer.
beijinhos

Shelyak disse...

Como sempre, fantástico!!! e voyeur... hummmm... algo deliciosamente sofisticado!
:))))

Anónimo disse...

Hello. And Bye.