segunda-feira

Ouvir a crua verdade

Publicado a 12-05-08
Está calor no Espaço Magnolia. Está demasiado calor para a época primaveril, para o ar sereno que vive na rua e que tem caracterizado os últimos dias na cidade. Está calor. E o Espaço Magnolia torna-se um lugar sufocante a qualquer pessoa que ultrapasse a porta de entrada. Cristina vagueia o seu passo e não consegue deixar de chamar a atenção quando entra no estabelecimento. Os seus óculos escuros ocupam-lhe parte da face e tornam o seu olhar oculto. O seu cabelo escuro preso na nuca incorpora-lhe um ar sensual mas distante. A roupa clara que lhe ajusta ao corpo é presunçosa. Cristina sabe porque é que entra ali e porque é que todos olham para si. E a mulher só pára quando atenta à voz que pretende ouvir.
- Onde é que vais assim tão confiante?
Rafael está sentado numa das mesas do Espaço. Acaba de tomar o seu lanche predilecto, mais uma das especialidades da casa. Ele levanta o olhar e consegue imobilizar o corpo da sua ainda amante. Cola um sorriso presunçoso, como que a convidar a mulher a sentar-se ali, como que se estivesse ciente de que ela se vai sentar. Cristina desvia a cabeça para mesa e lança o olhar, mas sem tirar os óculos escuros. Cristina gira os pés e aproxima-se da mesa. Impávida e serena, Cristina senta-se.
- Eu queria um café, se faz favor.
Depois de fazer o pedido de uma forma ponderada a Vasco, Cristina manteve o olhar fixo em Rafael. O instrutor admira toda a pose da mulher. A maneira como ela entrou, o jeito como se veste, a postura que mantém e tudo o que por detrás daquela máscara se possa esconder.
- Combinámos alguma coisa?
- Temos necessariamente que ter combinado?
- Não sei, para apareceres subitamente aqui...
- O Espaço é um sitio fantástico. É frequentado por imensas pessoas. Acho que também tenho o direito de estar aqui.
- Talvez tenhas razão. Mas não me parece que tenhas surgido aqui só porque te apeteceu vires tomar café.
- Vi que estavas aqui dentro e quis vir falar contigo.
- Estou a ouvir-te.
E denota-se de facto um incremento de atenção na postura de Rafael. Ele aguarda que a mulher lhe faça uma proposta irrecusável para subir ao 3º esquerdo e que ambos possam extravasar o desejo que ambos nutrem sexualmente. Carnal. Sexo. Nada mais. Ele está apenas ansioso para ver a forma como ela o irá pedir. Mas Cristina está silenciosa. Recebe o café que Vasco acaba de trazer. Agradece. Gira a chávena no pires. Pega no pacote de açúcar, repara no motivo publicitário que se insere no papel. Inspira. Abre o pacote. Despeja o açúcar. Pega na colher e expira. Mexe o liquido e olha para o café, procurando perceber qual o gosto que ele pode ter. Rafael continua a aguardar. Deduz que a mulher está com algum receio da forma como deve fazer o pedido. Mas entre ele nunca houve formalismos. O homem abre o sorriso e prepara-se para incentivá-la a pedir. Cristina levanta a cabeça e decide-se, antes mesmo de tocar com os lábios na borda da chávena.
- Andas a comer a prostituta?
Cai o semblante de Rafael. Corre um turbilhão dentro da sua mente. O seu olhar evade-se. E literalmente, depois de ter ouvido, ele não sabe exactamente como responder.
- Vi-a sair daqui e não resisti perguntar-te. E tens mesmo ar de quem acabou de foder com ela. Como sou fantástica em deduções, achei que só precisava da tua confirmação.
- O que tens tu a ver com isso?
- Entrego-me a ti como poucas mulheres o fazem. Sou casada e tenho um amante que me coloca num trapézio sem rede. Evito meter-me com homens que não conheço, ou homens que fodem com qualquer tarada que aí apareça.
- És uma santa!
- Não ando a foder com putas!
- Ela é minha vizinha. É uma pessoa em quem confio. É uma mulher que os vizinhos adoram.
- Não duvido!
- Ela é honesta, ela é limpa, ela não é da tua conta.
- É uma puta!
Rafael cansa-se de procurar responder. Respira fundo e retira a carteira do bolso. Abre o sitio onde guarda o dinheiro e levanta o olhar para Vasco. Em nenhum destes instantes ele voltou a olhar para Cristina. É uma questão de aguardar pelo funcionário e Rafael vai sair daquela mesa. De uma maneira que ele não ousava imaginar, aquela conversa está a incomodá-lo.
- Tens cá uma lata... Que direito tens tu de vir aqui e questionar-me sobre as minhas amantes? Sempre soubeste com quem ando, com quem me meto, com quem não me quero meter, com quem tu própria queres que eu ande... Devo-te alguma coisa, Cristina? Ela deve-te alguma coisa? Queres ir-lhe dizer pessoalmente que ela é uma puta?
- Se pudesse, talvez o fizesse.
- Tiveste essa oportunidade... Porque não entraste aqui antes? Ou achas que não te vi a espreitar antes dela sair?.... O que tens tu a ver se eu ando a comer uma acompanhante?
- Tenho a ver que ando metido contigo. Se uma mulher que fode com qualquer otário por dinheiro, anda a meter a rata no mesmo sitio onde eu ponho, então isso tem a ver comigo.
- Fala baixo...
- Estás com medo? Tens receio que saibam que andas a comê-la?
- Não! Não tenho sequer problemas com quem me envolvo ou não.
- Cabrão...
O olhar de Cristina evade-se. Posiciona a cabeça para se fixar no que acontece fora do estabelecimento. Mas ela quer ouvi-lo. A mulher precisa de ouvir algo reconfortante da boca de Rafael. Algo que lhe diga que foi só uma foda. Algo que lhe transmita que ele não está apaixonada por uma mulher que ele considera acompanhante e Cristina entende como uma vulgar prostituta. Algo que no fundo lhe possa dizer que ele não está demasiado encantado com uma mulher fantástica. Porque nem Cristina consegue negar que a vizinha de Rafael é fascinante e irresistível. Mas o instrutor silencia. Não parece ter gostado do tom com que foi confrontado, por uma mulher que é apenas e só sua amante. Uma mulher que trai o seu próprio marido para estar consigo. Ele não gostou da forma como tudo o que ouve da voz dela parece uma ameaça. Após alguns segundos retraído, agindo defensivamente, procurando perceber o verdadeiro alcance das palavras de Cristina, ele volta a vestir a sua pele preferida.
- Sabes qual é o teu problema?...É seres presunçoso demais...É usares esse sorriso irritante até cansar.
- Tu sempre gostaste...ou não?
Cristina sente-se inconformada. Sente que não consegue ter uma resposta concreta para lhe dar. Sente-se desarmada perante o carácter persuasivo do seu amante. O mesmo amante que ela procura quando sente necessidade de um momento intenso, apaixonante, mas descomprometido. Mas Cristina não se conhece como uma mulher derrotada. Acaba de tomar o café e levanta os óculos escuros. Coloca-os acima da testa e desvenda o seu olhar a Rafael. São olhos intensos, inchados mas ainda assim pequenos. Guardam tudo o que invade a sua alma. Mas o que realmente interessa hoje em Cristina não é o que o seu olhar pode revelar. A sua boca hoje não se vai calar.
- Sim...Eu sempre gostei, Rafael. Sabes porquê?... Porque fui ingénua em viciar-me nesse sorriso. Fui inconsciente em achar que esse teu jeito demonstrava que conseguias fazer uma mulher feliz.
- Não te faço feliz?
- Vais fazendo...Mas uma mulher precisa de se sentir feliz com o homem que ama todos os dias, a toda a hora.
- E?!...
- Tu nunca foste o homem que me poderia fazer feliz a toda a hora, Neves...
- Nem nunca foi essa a minha pretensão...
- Pois, talvez por isso é que me casei novamente com outra pessoa em vez de te procurar a ti.... Felizmente...
- Vens aqui para as fodas e o outro que te dê a felicidade absoluta que pretendes...
- Achas mesmo que algum dia conseguirás fazer alguma mulher feliz?...
- Mais uma vez, isso não é da tua conta....Mas de qualquer maneira, nunca disse que o queria fazer...Nunca o procurei fazer... Pelo menos contigo.
- Eu sei, Neves...Eu sei...
Vasco vem buscar finalmente o dinheiro com que Rafael pretende pagar o seu lanche, o lanche da sua vizinha e o café de Cristina. Por uns momentos, hesita em levantar-se. Respira fundo e faz força nos joelhos.
- Sabes que um dia apaixonei-me por esse teu sorriso? Por essa tua forma fria de chegares a mim. Pela frieza com que me despias, com que entravas em mim. E achava mesmo que te podia mudar.
- Nunca pedi a ninguém para me mudar. Nem sequer pedi que gostassem de mim assim.
- Eu gostei. Gostava de saber que eras diferente. Que eras directo. Que me desejavas pela maneira como eu me fazia a ti. Que era uma questão de tempo até deixares de ser distante. Que mais cedo ou mais tarde irias pedir-me para ficar para sempre. Que só não me beijavas por receio de te apaixonares... Estava enganada. És mesmo assim. Fodes bem... Não duvides que fodes bem. Podes-te vangloriar disso. Nem nunca sequer percebi muito bem como é possível vir-me contigo.
- Do que te queixas então?
- Não me estou a queixar. Estou apenas a confessar-te que nunca nenhum homem me possuiu assim. Nem mesmo aqueles que me amaram e que ainda me amam. A culpa é mesmo minha. Sou eu que morro de tesão de querer essa frieza, essa distância... E sei que é isso que as outras mulheres procuram em ti. Até essa...essa acompanhante. Mas sei que todas elas pensam o mesmo que eu.
- E o que pensas tu?
- És um cabrão. E talvez todas as mulheres que se entregam a ti gostem de se sentir como a tua vizinha o é. Talvez até eu goste de me sentir puta nos teus braços.
- Sabes que és mais do que isso.
- Sim...Sou uma puta casada. Duas vezes. Que se excita quando me fazes sentir assim. Quando me fazes sentir diferente de muitas mulheres que nem sequer têm coragem de se deixar levar por um homem assim. Quando falas comigo ao telefone e parece que me enfeitiças. A tua voz...as tuas palavras. Tens essa carinha laroca e parece que fazes de propósito para bajular o teu próprio corpo. Mesmo que quisesse, é impossível ficar indiferente a isso. Quando tomas conta do meu corpo, parece que nunca mais vou ser a mesma.
- Gosto de te fazer sentir especial...
- Oh, sim...Tu fazes-me sentir especial. De cada vez que saio da porta da tua casa, sinto-me especialmente abandonada.
- Desculpa, não é assim que te quero fazer sentir.
- Mas é assim que me sinto...E isso excita-me... Por mais que me custe, por mais que me possa até custar um casamento, isso é excitantemente viciante.
- Não sei o que te dizer...
Agora Rafael não se levanta. Agora Rafael baixa o olhar e aguarda que a voz de Cristina diga algo aceitável. Algo que gere um entendimento plausível, que permite que ele saia do Espaço sem sentir remorsos.
- Não estou apaixonada por ti, Neves... Mas gostava...Melhor, um dia sonhei que poderias ser meu. Hoje?...Hoje gosto de foder contigo. Adoro. Se a tua casa estiver livre e se quiseres, adoraria que me possuísses no teu sofá. Que me dissesses que me desejas. Que as tuas mãos levassem o meu corpo para onde só tu me sabes levar. Que me fizesses vir como há já algum tempo não me venho....Sim, se quiseres sou assim tua.... Mas descansa...Não estou apaixonada por ti. Nem eu, nem nenhuma mulher vai morrer de amores por ti enquanto agires dessa forma. Nem sequer a tua acompanhante.
- Cristina.... Só quero que saibas que.... Ela é de confiança. Ela pode fazer o que faz. Eu posso nem sequer concordar com isso. Até te posso admitir que aquela mulher me fascina. Mas por favor, não a trates como puta.
- Tudo bem, como queiras...Só não quero que estragues esta merda toda.
- Eu ainda sei que és especial para mim.
A mão de Rafael procura com algum desnorte a mão leve de Cristina que se coloca sobre a mesa. E no mesmo instante que ele aperta a mão da mulher, ela percebe que o café está pago. Percebe que pouco mais há a dizer. Percebe que aquele talvez nem seja o momento adequado para subir ao apartamento do seu amante. Percebe que o circulo vicioso irá continuar. Ela liberta a mão e volta a baixar os óculos escuros. Levanta-se da cadeira e volta a transmitir-lhe algo num tom de voz suave mas intimidante.
- Ah, é verdade...a minha sobrinha aguarda há uma semana pelo teu telefonema.
Cristina sai como do Espaço Magnolia como entrou. Confiante, distante, silenciosa, com todos os olhares fixos no seu caminhar excêntrico. Talvez o objectivo dela quando se dirigiu à rua do Edifício não fosse este. Possivelmente o seu intuito era a esta hora estar despida diante do seu amante. Mas o seu corpo ainda vibra com o facto de ter deixado Rafael preso à cadeira, preso às palavras emitidas pela voz daquela mulher.

5 comentários:

Anónimo disse...

Moradores do Magnólia
Rafael sentiu o inicio do fim de um caso. Não vai estagnar por aí. A sobrinha vai tomar o mesmo rumo. Todos os homens de vida variada, quando se fixam em uma tem o mesmo destino. Neves não foi o primeiro e não vai ser o ultimo.
Aguardemos.
Bjs molhados e abraços
Julio135

Anónimo disse...

O Rafael e a Ana são os meus dois moradores preferidos, e vê-los juntos (ou amantes, como queiram) é simplesmente intrigante e espectacular ao mesmo tempo. Concordo com o Julio135. Este é o início do fim de muita coisa na vida de Rafael, e quem sabe, de Ana.

Magnolia disse...

JULIO 135, talvez seja precipitado dizer o fim de um caso. Ana pode ser de facto uma obsessão, mas para ele é dificil resistir aos encantos de outra mulher, principalmente Cristina. A ver vamos.
SPICY ANGEL, ainda bem que gostas de dois moradores que residem em apartamentos diferentes. Mais do que favorito, posso saber qual é que achas que de entre os seis é o verdadeiro?
Podes entende-los como amantes. É essa a realidade. :) Sucintamente, é coerente dizer que as vidas de Rafael e Ana tomaram um novo rumo. O fim de alguma coisa é que não se adivinha :)

Anónimo disse...

Pois, sinceramente, não sei bem quem é o verdadeiro... Mas eu diria... ou a Maria José... ou a Lúcia... não sei :P Não quero ainda arriscar.
Vou ler o teu último post ;)

luafeiticeira disse...

xiiii, uma pessoa não pode estar 3 dias sem espreitar este edifício que sente logo que não tem a bisbilhotice em dia. Pois, o Rafael meteu-se com uma profissional e agora apanha daquela que, traindo o marido, se julga mais honesta. É a hipocrisia do costume.
beijos que ainda há mais a comentar.